"O futebol não é um questão de vida ou morte... é mais importante do que isso". A frase, de um ex-treinador do Liverpool, traduz de forma precisa a paixão que tantos de nós sentimos por este jogo.
Sem pretender fazer teoria nem escrever um ensaio - já existem estudos e obras muito mais exaustivos do que qualquer coisa que eu aqui possa dizer - queria porém partilhar, de forma impressionística, algumas reflexões sobre o assunto.
O que pode explicar que pessoas "normais", calmas na sua vida quotidiana, se descontrolem completamente a ver futebol? Que pessoas com vidas profissionais e familiares estabilizadas, lancem insultos e ameaças sobre árbitros e adversários quando vão a um estádio?
Creio que o futebol desempenha nas sociedades modernas o papel que no passado coube a rituais sociais, militares e até religiosos.
A vida social - a vivência colectiva que no passado se realizava em festivais, celebrações políticas e religiosas - tem vindo a perder importância nos nossos tempos. A maioria das pessoas não vai ou vai menos à missa (lugar de encontro por excelência no passado), os grandes festivais ou celebrações periódicas de outros tempos (a Páscoa, a Primavera, os equinócios e os solestícios) já não se realizam e os grandes comícios políticos também cada vez menos. Até as greves têm uma adesão cada vez menor.
O desporto e o futebol em especial, pois é o desporto de massas por excelência, acaba assim por assumir esse papel social de encontro de todos: todas as classes, novos e velhos se juntam sem distinção entre si. Todos são adeptos. Esta designação é aliás retirada da religião - o adepto é aquele que adere a uma religião ou seita.
No futebol replicam-se os comportamentos tribais e militares - os tambores, os estandartes e os uniformes do nosso clube; "nós" contra "eles", em que "eles" passam de adversário a inimigo, numa espiral de irracionalidade. Nem sequer falta o "bode expiatório", obviamente o árbitro (que não tem adeptos), que representa também um papel social que existia na antiguidade. Ao "bode expiatório", que encarnava todos os males sociais e atraia sobre si todos os ódios, cabia expiar todos os pecados e apaziguar os homens e os deuses.
Com o desaparecimento dos antigos rituais militares e sociais, a função de libertação dos impulsos negativos e violentos da nossa sociedade ficou por preencher. O futebol desempenha hoje esse papel, servindo para libertar as frustrações acumuladas.
Por fim, a experiência do religioso - um sentimento de êxtase colectivo - foi abolida do mundo moderno, de mentalidade muito materialista, céptica e utilitária. Mais uma vez, o futebol veio ocupar o vazio: são os hinos, os cânticos, a euforia do golo, a celebração catártica da vitória, a recompensa pelo esforço, o prémio justo.
Em sociedades que inibem ou reprimem os nossos sentimentos mais fortes e instintivos, sobretudo ligados à virilidade, o futebol acaba por ser o lugar onde eles se exprimem e tudo é permitido.
Em hora e meia se encenam as emoções da vida. Se acredita em sonhos e heróis e se fala de milagres e de glória.
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